Quem manda na língua?

Tribuna de Petrópolis - 29/05/2011 - Artigo de Silvia Rodrigues Vieira, professora da UFRJ 

É vergonhosa a cobertura que boa parte dos meios de comunicação de massa tem dado à notícia de que haveria um livro didático de Português (Por uma vida melhor, de Heloísa Ramos) que proporia ensinar erros linguísticos aos alunos brasileiros. Vergonhosa, porque fere três princípios que a sociedade brasileira espera devam ser pilares básicos dos canais de informação: credibilidade, cientificidade e “imparcialidade possível”, princípios que devem vir conjugados a um propósito maior, humanista, o da boa fé.
Primeiramente, a maioria das informações veiculadas não é verdadeira. Basta uma leitura da obra, atenta ou desatenta, para perceber que muitos críticos do livro didático não o leram; houve tão-somente uma reação inflamada a um trecho, propositalmente descontextualizado. A verdade é que o livro propõe, explicitamente, que “a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário.” – o que se confirma nas atividades de treinamento do padrão culto escrito. Do exposto, fica óbvio: a credibilidade das notícias foi flagrantemente abalada.
Em segundo lugar, as notícias confundem os leitores, porque eivadas de afirmações sem qualquer respaldo científico. Isto porque, na maioria dos casos, não contaram com a opinião dos especialistas no assunto, que poderiam ser bem representados pela Associação Brasileira de Linguística. É certo que a língua, maior expressão de identidade cultural, interessa a todos, especialistas ou não no assunto, o que não implica que todos tenham informações suficientes para avaliar cientificamente fatos de natureza sociolinguística. Há que se respeitar o enorme cabedal de informações desenvolvidas em projetos de pesquisa em todo o país.
Por último, e não menos importante, foi flagrante, em alguns meios de comunicação, o ataque desmesurado ao livro didático. Somente após a divulgação irrestrita de opiniões contrárias à proposta do livro, com pequenos excertos de fala oposta à do jornal, surgiram alguns textos em defesa da proposta didática em questão. Apenas para ilustrar o que se afirma aqui, verificou-se que, em jornal de grande circulação no Rio de Janeiro, de todas as cartas de leitor publicadas, apenas duas defenderam a obra (uma delas re-encaminhada pela leitora, minha amiga, com a queixa de que o veículo não tinha publicado qualquer carta em defesa do livro didático).
Na qualidade de sociolinguista e apaixonada pela variação linguística, tenho, por obrigação de ofício, que esclarecer aos leitores parte do ocorrido: o trecho da obra em questão só causou o intenso rebuliço – sem falar em velados interesses políticos e econômicos – porque enfoca a falta de concordância, variante altamente estigmatizada em termos sociais. Alguém se surpreenderia se constasse de um livro didático resposta afirmativa à pergunta: Posso falar “me empresta”, em vez de “empresta-me”; “encontro ele todos os dias”, em vez de “encontro-o todos os dias”; “a gente analisa ou analisa-se amostras”, em vez de “analisam-se amostras”; “ele se encontraria com o professor”, em vez de “ele encontrar-se-ia com o professor”? Responderia o material didático: “Claro que pode. Ainda assim, preste atenção ao contexto (modalidade oral ou escrita; texto formal ou informal) em que você está utilizando essas variantes.” Fica, então, a reflexão: por que a estrutura “me dá”, por exemplo, seria “menos errada” do que “os livro”, variantes comprovadamente praticadas pela maioria da população brasileira?
Na realidade, a variação linguística é julgada adequada ou inadequada, e é muito bem aceita por escritores, professores, jornalistas, donos da língua de plantão, quando ela pertence ao conjunto de “normas de uso” que seria por eles praticado. Quando se trata de regras normalmente associadas à fala dos menos favorecidos economicamente, a variação é “feia, deplorável, grave” (Imaginem que um leitor de jornal equiparou a falta de concordância aos atos de matar e roubar!), juízos de valor tendenciosos e lamentavelmente nada, nada científicos. É preciso assumir, com boa-fé e de coração, na academia, na escola, em casa, e em qualquer circunstância, que o que existe, em matéria de usos linguísticos, é uma pluralidade de variedades e normas – normas populares, normas cultas, no plural, no tão desejável plural. Em última instância, refazer as posições ideológicas acerca da linguagem e de seus usos é condição sine qua non para “uma vida bem melhor”.

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